quinta-feira, 29 de setembro de 2016

São só Crianças!

Cresci em Arouca, uma aldeia a 60 km da cidade do Porto e em 1986 a minha família mudou-se para o Porto.
Na ocasião tinha 6 anos e entrei para a 2ª classe na Escola da Bela em Ermesinde. Apercebi-me quase de imediato que tinha um sotaque esquisito que causava gargalhadas e que vir da aldeia era uma desvantagem por razões que nunca me explicaram.
Um dia no recreio da escola, para delírio da multidão que assistia ao jogo de futebol durante o intervalo, o rapaz da aldeia teve a sua oportunidade de brilhar. Atravessei o campo com a bola nos pés, fintei grandes e pequenos e marquei um golo.
Quando me preparava para começar a festejar, vi que o jogo tinha continuado sem a bola original no campo: a bola agora era eu!
Não me lembro das dores que senti enquanto estava no chão a ser pontapeado, mas nunca me vou esquecer da humilhação e da solidão que senti pela falta de coragem dos colegas e da multidão para me defender.
Quando cheguei a casa, a minha mãe entrou em pânico e ao ver a gravidade de algumas lesões levou-me ao médico.
"Os pontapés na zona das virilhas podiam ter provocado lesões que não lhe permitiriam ter filhos." - disse o médico à minha mãe.
A expressão da minha mãe e o silêncio que se seguiu fez-me perceber que a situação era grave.
No dia seguinte levou-me à escola mas não entrei como de costume. Ficamos no portão à espera do protagonista do 4º ano que me confundiu com a bola.
Quando ele chegou com o pai, a minha mãe de 1.60 m explicou calmamente o que se tinha passado.
"São só crianças" - disse ele.
"O seu filho não sai daqui sem pelo menos um pedido de desculpas." - respondeu a minha mãe.
"São só crianças." - respondeu novamente o pai, já com algumas gargalhadas pelo meio, e a abrir alas para o filho entrar na escola.
A minha mãe voltou a explicar-lhe o que se passou, agora num tom mais alterado e a gesticular, e explicou a gravidade das lesões.
"A sua sorte é ser mulher, porque se não fos...."
A frase nunca chegaria a ser terminada. Vi o braço da minha mãe recuar e avançar numa fracção de segundos antes, e logo a seguir o pai do meu colega estendido no chão desmaiado.
Nesse ano lectivo, e nos dois seguintes nunca mais sofri maus tratos ou intimidação. O meu agressor passou a ser um dos meus defensores.
No entanto, fiquei com uma vergonha secreta escondida até ao dia de hoje: ter provocado que outras pessoas se agredissem por minha causa, e não ter sido eu a procurar primeiro resolver esse conflito.
Imagino, como a minha vida teria sido diferente se a minha mãe e o pai do meu colega nos tivessem ajudado a resolver o nosso próprio conflito.
Se ajudarem os vossos filhos, familiares e amigos a resolverem os seus próprios conflitos em vez de os resolverem por eles, irão dar-lhes muito mais do que dois anos letivos de paz podre. Irão dar-lhes a capacidade de ultrapassar obstáculos e adversidades e aprender lições valiosas para o resto da vida.
Um dos atributos mais valorizados e que se destaca mais em líderes na política, nos negócios, no desporto, na religião, na comunidade e nas vossas famílias é a capacidade de resolver conflitos e gerar consensos. No entanto, quando eles surgem, na maioria das vezes responsabilizamos os outros pela sua resolução ou simplesmente esperamos que o tempo e alguma espécie de "magia" os faça desparecer. Desperdiçamos assim, oportunidades preciosas de adquirir este atributo valiosíssimo.
Não são só crianças, e não são só conflitos.

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